BoF Voices: Moda e prazer para o cérebro

BoF Voices: Moda e prazer para o cérebro
Notificação de instagram; frase de Simon Portes Jacquemus no contexto da BoF Voices 2024. Colagens: autora.

Ao abrires este e-mail talvez te perguntes o que te trago esta semana. Pois bem, entre o final de uma semana e o início de outra, tenho para ti mais de 11 horas de BoF Voices 2024 em cerca de 10 minutos de leitura. (Ainda é preciso dizer que não é um resumo, mas um artigo com a perspectiva The Fashion Standup?) 

Leio o The Business of Fashion há, sem exagero, mais de uma década. Ainda me lembro da alegria rejubilante com que recebi em casa a revista BoF que tinha como figura de capa Anna Wintour; da dedicação que tive com cada curso digital, principalmente o de História de Moda; e para mim o mais fixe de ter um endereço de e-mail da faculdade foi poder ser membro estudante do BoF. 

Mais tarde, ouvi de uma das pessoas que mais admiro o seguinte conselho: “ler o BoF todos os dias” e fiz o possível e o impossível para cumprir religiosamente. Afinal, sempre admirei aquilo que Imran Amed construira a partir do seu sofá em Londres e, pensando bem, é um pouco óbvio porque existe o ‘The’ em ‘The Fashion Standup’.

Introduções feitas, vamos ao “O quê?”, “Onde?”, “Como?”, “Quando?” E “Quem?”. A edição de 2024 do BoF Voices decorreu em Oxfordshire, no Reino Unido, entre os dias 12 e 14 de Novembro.  Tendo alguma assistência presencial e outros membros da comunidade BoF puderam assistir ao livestream ou à gravação dos mesmo, eu iterei entre estas duas últimas alternativas. 

Para além de decorrerem  em três dias, estas conferências dividiram-se em cinco sessões distintas: “The Wider World”, “The Fashion System”, “Technology and Innovation”, “Global Culture and Creativity”, “Live your best life”. 

Não queremos que o primeiro terço deste artigo seja uma seca, portanto vou-vos localizando nas sessões, secções e oradores à medida que vamos avançando  para informações mais completas ,podes clicar aqui. Teria vários títulos para dar a este artigo, estes servirão de subtítulos e de estrutura.

A guerra no coração do atelier

Esta expressão mistura dois grandes temas explorados no Voices, a realidade negativa em que vivemos: de guerras e polarização de opiniões, de medo e de descontentamento em várias formas. Mas está presente a criatividade, aquilo que é quase onírico. Esta personificação ao espaço de criação do atelier dotando-o de um coração foi feita por Alessandro Michele referindo-se ao atelier da Valentino, mas lá chegaremos. 

A Moda é reflexo do Zeitgeist actual. E o que se passa agora, agora neste momento? Temos uma guerra na Europa, outra no Médio Oriente e uma cobertura mediática e imediata brutal de ambas ; e ainda não vai estar uma mulher no cargo mais importante do mundo, a presidência dos EUA, mas sim Donald Trump. 

Dia 1, Sessão 1. Nemonte Nenquimo; Mitch Anderson; Clover Hogan;Ravi Agrawal; Sven Smit; Fred Swaniker; Daniel Levy; Bandana Tewari; Tina Brown;Jameel Jaffer. Imran Amed. Créditos das imagens: BoF. Colagem: autora.

Não tenho energia para tornar a minha newsletter um campo de batalha de opiniões, portanto no que toca a estas questões vou manter-me factual e breve. 

Sven Smith decretou que estamos numa nova Era, e não só devido à Taylor Swift. Alguém podia pegar na Eras Tour e na Barbiecore e, com esses dois ingredientes, fazer um reset ao mundo? Obrigada! Durante a apresentação de “We are in a new Era!” foi-nos dada uma alternativa, - olharmos para o telescópio para vermos as estrelas e um futuro mais brilhante, invés de nos concentrarmos no microscópio que irá ampliar os problemas. Uma vez que a esperança no futuro é a única forma de nos garantirmos como espécie, devolvendo às novas gerações o desejo da parentalidade. 

Do presidente eleito dos EUA falou-se em duas ocasiões distintas, ambas no decorrer da primeira sessão. Primeiro, com Ravi Agrawal a ajudar-nos a perceber o que tal regresso à Casa Branca significará para o mundo, que basicamente, na minha interpretação, poderá significar tudo e simultaneamente o seu contrário. Mais tarde, foi a vez de Tina Brown mencionar a Imran Amed a sua perspectiva sobre uma das personalidades mais influentes do imobiliário nova-iorquino da década de 90, que se tornaria a cada dia mais sombria. 

Mas não foi o tema principal da participação da grande impulsionadora da Vanity Fair e do New Yorker - mas falar dos novos heróis, os jornalistas independentes - aqueles que acima de tudo querem investigar e reportar a verdade, num mundo cada vez mais dominado por assustadores gigantes. Tina Brown foi, no contexto destas conferências, a autora da expressão que deu origem ao título deste artigo.

E um mundo sob domínio de alguns é um mundo em guerra, estamos em guerra. A polarização de opinião daquilo que acontece no Médio Oriente aparenta não ter precedentes. Jameel Jaffer e Daniel Levy fizeram um apelo ao diálogo empático, compreensivo e verdadeiro. O entendimento e o ouvir para entender a perspectiva do outro e não só para responder e rotular, configuram o único começo de uma sociedade mais pacífica.

Esta liberdade de expressão é também a única forma de a Moda resolver um dos seus maiores problemas - a falta de condições laborais dos garment workers. O que acontece quando está demasiado calor para produzir Moda? Foi esse o problema que Sarah Kent tentou desmistificar com Beto Bina, Abiramy Sivalogananthan e Laurie Parsons.  Sendo a grande conclusão é que só se poderão reverter estas condições desumanas quando os direitos de união forem consagrados, nos locais que fabricam a roupa e que todos tão bem conhecemos, para que através da união cada pessoa possa ter consciência dos seus direitos e poder para os exigir. 

Dia 1, Sessão 2. Olya Kuryshchuk. Ravi Thakran; Gemma D’Auria; Michael Kliger; Abiramy Sivalogananthan; Brandon Wen; Roksanda Ilincic; Sarah Kent; Laurie Parsons; Lauren Santo Domingo; Bohan Qiu; Beto Bina; Daniel Ervér; Simon Porte Jacquemus. Créditos das imagens: BoF. Colagem: autora.

Quando pensamos em Criatividade em diálogo com Negócio no seio da Moda, não temos de pensar em guerra, por vezes, é tudo só coração. O novo director criativo e o CEO da Valentino são prova disso.  Alessandro Michele e Jacopo Venturini mostraram que o que faz o sucesso, pode muito bem ser, a emoção da amizade, da empatia e da liberdade e, não gráficos e números.

A máquina fotográfica em cima da cama 

Quando Giles Diley decidiu desistir da fotografia de Moda, a meio do trabalho num editorial num luxuoso hotel, imaginou como seria se mandasse a sua máquina pela janela da suite, mas equacionando o estrago que isto poderia provocar na vida de outros, apenas a lançou para cima da cama. A máquina fotográfica em cima da cama passou a ser o novo “murro na mesa”. Assim, subordinados a este tema abordaremos outras mudanças, activismos e revoluções.

E o mínimo que se pode dizer é que a revolução se mostrou de várias formas no palco do BoF Voices. Desde as mudanças de narrativa ou uma abordagem mais consciente aos focos e aos erros europeus e norte-americanos a um impacto mais localizado.

Fred Swaniker apela que se vire a página da estória que se conta sobre África e para que se veja o talento e o potencial de recursos humanos que muito beneficiará uma Europa cada vez mais envelhecida. 

Ravi Thakran desmistifica a India como o novo grande mercado em crescimento, mas que não pretende ser ocidentalizado. Uma vez, que como nos explica Utkarsh Saxena foi a sua colonização que criminalizou o amor queer, que sempre esteve presente na sua cultura ancestral sem preconceitos.

Es Devlin e Ekow Eshun desafiaram-nos a repensar a ideia de casa e de lar, face àqueles que nos parecem semelhantes ou diferentes. Depois de todos termos aprendido a aproveitar a casa de maneira diferente, porque fomos obrigados a fazê-lo, passamos de vestir o luxo para levá-lo a passear para desfrutarmos dele em casa e, assim, o design torna-se o novo Luxo. Por entre zeitgeist Benjamin Paulin redescobre o trabalho do seu pai em Paulin Paulin Paulin. Daniel Ervér, o novo CEO da H&M quer reabilitar a casa onde cresceu profissionalmente focando-se não só na criatividade, mas trazendo de volta as colaborações com designers e investindo na qualidade e na experiência em loja. 

Há quem nunca tenha tido dúvidas da importância da sua casa e que ao lutar para que seja saudável está a lutar pela humanidade, falo de Nemonte Nenquimo e do seu empenho pela preservação da Amazonia. Clover Hogan não o sentiu tão na pele, mas isso não a impediu de se dedicar ao activismo climático, ao ponto de aos 25 anos já ter aconselhando líderes mundiais em como a questão climática é, na verdade, uma crise cultural.

Uma cultura de consumo para a qual Lawrence Lenihan propõe uma revolução na cadeia produtiva da indústria, assente na inteligência artificial que permite uma produção de Moda on demand, sem desperdício, portanto mais sustentável.

 

Dia 2, Sessão 3. Rosey Chan; Lawrence Lenihan; Julie Bornstein; Jefferson Hack; Tom Graham. Josephine Philips. Créditos das imagens: BoF. Colagem: autora.

Falta-nos abordar ainda outra dimensão de casa, a do corpo - corpo que apresenta novos desafios e circunstâncias como aconteceu com Diley, mas que não foi impedimento para trabalhar no sentido de ajudar a melhor as circunstâncias de quem fora mais afectado por diferentes guerras. 

Esse corpo físico que pode ter uma terapia na música como argumenta e demonstra Rosey Chan ou que pode esconder o nosso “eu” mais verdadeiro como defende Mory Fontanez.

O (quase) conto de fadas dos creators

Este foi o meu primeiro pensamento ao ouvir a estória de amor de Nara Aziza Smith e Lucky que Smith. Aqui terão lugar para além do que destaco da conversa de Nara e Lucky com Imran Amed, assim como todos os outros projectos que não estejam só relacionados, de alguma forma, com universo da creator’s economy mas também com o digital na sua amplitude. 

Foram vários os temas que subiram a palco. O sucesso do e-commerce da Moda de Luxo, está na cultura de marca e em perceber de retalho, mas acima de tudo compreender a Moda. Uma solução de AI que nos ajuda a escolher que peça comprar, melhorando de compra de Moda em digital tornando-a única. A AI também poderá dentro de pouco tempo permitir a cada pessoa criar conteúdo digno de Hollywood, é o que defende Tom Graham que graças a esta tecnologia rejuvenesceu Tom Hanks para um filme que estreará em breve. 

O co-fundador da On e o Co - fundador da Skims concluíram que um produto de qualidade associado a uma forte cultura de marca é o antídoto à efemeridade dos algoritmos.

Josephine Philips encontrou por meio das estórias do seu próprio guarda-roupa e na sagacidade acidental o caminho para modernizar o processo de reparação de peças repletas de memórias e de amor. Com Sojo as marcas trazem ao consumidor valor acrescentado e um maior sentido de comunidade, sem complexos de que a oferta de serviço de reparação seja sinónimo de menos qualidade.

Dia 3, Sessão 4. Alessandro Michele; Jacopo Venturini; David Allemann; Tim Blanks; Ekow Eshun; Salman Toor; Jesse Lee;Jens Grede; Benjamin Paulin; Es Devlin. Créditos das imagens: BoF. Colagem: autora.

Regressando à conversa intitulada de “Living authentically in viral moments”, uma reflexão de Imran Amed sobre o trabalho de Nara Aziza Smith tocou-me, particularmente. Amed argumenta que ainda que Aziza Smith dedique cerca de 9 horas diárias à criação de conteúdo, esta actividade não é consensualmente interpretada como trabalho, sendo consumido num ecrã tão pequeno como o é o de um smartphone. Mas, para Imran, se o meio de consumo do mesmo conteúdo fosse o grande ecrã, ninguém duvidaria do seu valor e do trabalho árduo envolvido.

Oh my baby !

Oh my baby! Esta foi a expressão que tive a sensação de ouvir quando no final da conversa com Bianca Sanders, Bethann Hardison abraça o fundador The Business of Fashion.  Oh my baby! é subtítulo e está aqui porque por muito autoconfiantes e independentes que sejamos, existem momentos que só precisamos de ouvir uma pequena alcunha especial dita por quem admiramos para seguirmos em frente. Sim, aqui está experiência própria a escrever por mim. E, sim, este último capítulo trata da singularidade de Bethann Hardison, do percurso da auto - descoberta pela auto-expressão até à auto-confiança e da independência na Moda.

A modelo e activista Bethann Hardisom continua imparável aos seus 82 anos, depois ter dado um vasto contributo para uma indústria de Moda mais inclusiva e representativa, redefine os preconceitos da sociedade face à idade e ao idadismo. Deixando claro, durante a sua conversa com a designer de menswear, que nem todos estamos destinados a empreender grandes papéis de activismo, desde que cada um de nós contribua, em diferentes medidas, para uma mudança social positiva.

Karl Sanchez usou a arte da transformação criando a drag queen Nicky Doll para através da feminilidade usufruir e vivenciar plenamente a sua masculinidade. Já Salman Toor usou a pintura com enorme espontaneidade e muito verde para se descobrir e expressar para lá da cultura onde fora educado.

De “How Independent Brands can thrive in a Fashion World by Giants”, uma conversa moderada por Olya Kuryshchuk com Bohan Qiu, Brandon Wen e Roksanda Ilincic, conclui-se que o sucesso das marcas independentes assenta numa maior curadoria de apoios dado aos designers, mas acima de tudo uma mudança de mindset. Uma vez que a Moda precisa de inúmeros profissionais para existir, não podem existir só designers independentes para que exista Moda independente. É preciso mudar o mindset de que os designers são os players de maior impacto, ao tratar-se de uma indústria colectiva a educação em design de Moda não tem de implicar formar um designer de Moda, deve formar um criativo apto a actuar na área da Moda.

Dia 3, Sessão 5. Utkarsh Saxena; Bianca Saunders; Lucky Blue Smith; Bethann Hardison; Giles Duley;Mory Fontanez;Nicky Doll. Nara Aziza Smith.Créditos das imagens: BoF. Colagem: autora.

Simon Portes Jacquemus e a Jacquemus são, talvez, o exemplo mais mediático de uma marca de Moda independente. Ainda que tenha começado a sua marca com poucos recursos monetários, Simon alicerça o seu sucesso em três pilares fundamentais. O seu envolvimento total na marca que fundou como CEO e director criativo, funções que se desdobram em inúmeros outros papéis e funções. O humor como estética e forma de comunicação descomplicada que, através da diversão, torna a compreensão da Moda acessível a todas as gerações e backgrounds. E, por fim, a mais apostar todo o esforço e empenho na visibilidade e na criação de uma comunidade forte para lá da marca.

Sei que corro o risco de me tornar repetitiva, mas fashion thinking é um processo contínuo, ininterrupto e necessário para a continuidade da Moda como sistema. Portanto, não é legítimo tirarmos conclusões que evoluirá, pensar a Moda é um exercício, é um trabalho. 

Tirar conclusões sobre essa mesma actividade poderá chegar a ser snob. E como diz Simon Portes de Jacquemus, quando se é independente não se tem tempo para ser snob.